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“No modelo de Bill Gates, a saúde pública para os pobres é um privilégio gerido (ineficientemente) por filantropos.”

Tim Schwab, o premiado jornalista de investigação e autor, acabou de lançar o seu livro sobre um dos bilionários mais poderosos do mundo, Bill Gates. Ao longo dos anos, Tim Schwab escreveu sobre a Fundação Gates como parte de uma bolsa da Fundação Alicia Patterson. As reportagens de Schwab sobre a temática apareceram no Columbia Journalism Review, no British Medical Journal e na revista The Nation. A revista The Nation chegou mesmo a indicar o trabalho de Tim Schwab sobre Gates para um Prémio Pulitzer.

“As redações cobrem extensivamente Gates, mas quase sempre relatam as suas boas ações e grandes doações como as de um dos principais filantropos do mundo. É uma narrativa unilateral que, em muitos cenários, equivale à desinformação, se não a mitologia. Nunca tivemos realmente um debate aberto e honesto sobre o trabalho de Gates na filantropia”, diz Tim Schwab. O jornalista também fala sobre as atividades de Gates na Índia, que segundo este é o maior destino para o financiamento da Fundação fora dos Estados Unidos e da Europa. “A Fundação Gates é uma organização política, não uma instituição de caridade inocente”, argumenta o autor.

1. O que o levou a escrever este livro?

Sou um jornalista de investigação e, como diz um antigo ditado, o trabalho do jornalismo é “incomodar os confortáveis e confortar os aflitos”. Portanto, Bill Gates e a Fundação Gates deveriam estar entre os atores mais escrutinados do mundo pelos jornalistas. Contudo não estão. As redações cobrem extensivamente Gates, todavia quase sempre relatam as suas boas ações e grandes doações como as de um dos principais filantropos do mundo. É uma narrativa unilateral que, em muitos cenários, equivale à desinformação, senão a mitologia. Nunca tivemos realmente um debate aberto e honesto sobre o trabalho de Gates na filantropia. O meu livro, espero, cria um espaço para isso mesmo. Para examinar o que Bill Gates está a fazer realmente e não apenas o que a sua equipa de relações públicas nos diz que ele está a fazer.

Em última análise, o que estou a pedir aos leitores é que reconheçam que a Fundação Gates é uma entidade política, não uma filantropia imaculada. Peço aos leitores que considerem que Bill Gates não está só a doar dinheiro como também a comprar influência, utilizando a caridade para moldar como organizamos a saúde pública, a educação pública e outras políticas públicas. É um exercício totalmente antidemocrático de poder realizado por um homem obscenamente rico. Bill Gates procura influenciar a política de vacinas na Índia, o desenvolvimento agrícola no Uganda e os padrões de educação nos Estados Unidos. É difícil racionalizar o poder que ele exerce nos assuntos mundiais, além do sentimento antidemocrático de que “o homem mais rico tem direito a ter a voz mais alta”.

2. A perceção geral sobre Bill Gates é diferente daquela que apresenta no seu livro. Está a considerar possíveis repercussões?

É verdade que Bill Gates é amplamente admirado, mas também é uma das pessoas mais incompreendidas do mundo. A maioria das virtudes que atribuímos a Bill Gates são fictícias. Todos nós damos como certo, por exemplo, que Bill Gates é uma das pessoas mais generosas em todo o mundo. Contudo o que não consideramos é que, não importa quanto dinheiro Bill Gates distribui, a sua riqueza pessoal continua a crescer – durante o seu mandato como filantropo ela cresceu quase para o dobro. Deveríamos aplaudir Bill Gates por distribuir pequenas somas de dinheiro que ele não precisa e nunca poderia gastar? Ou deveríamos interrogar-nos sobre o porquê deste homem ter uma fortuna pessoal de 110 biliões de dólares, enquanto tantas pessoas vivem na extrema pobreza? Bill Gates é realmente generoso – ou ele é ganancioso?

Bill Gates pode ser definido por este tipo de contradições. Aqui está mais uma: Bill Gates não é apenas amplamente admirado, mas também amplamente temido. Muitas das pessoas que conhecem melhor a Fundação Gates – os seus funcionários e parceiros – têm medo de criticar publicamente o trabalho de Bill Gates por medo de perder o seu apoio. Isto não é muito surpreendente; é claro, que as pessoas têm medo de morder a mão que as alimenta. No livro, converso com muitas pessoas que trabalham dentro do império de caridade de Bill Gates, muitas como fontes anónimas, que são altamente críticas em relação a Gates, mesmo que não possam expressar publicamente as suas preocupações.

Quanto à sua pergunta, no entanto, também é verdade que muitas pessoas que trabalham para Gates têm incentivos perversos para agir como os seus defensores, o que poderia levar, como descreve na sua questão, a “repercussões” para o meu livro. Historicamente, grupos próximos a Gates têm sido hostis comigo e com a minha reportagem. A fundação financia uma enorme rede de organizações – redações de jornais, ONGs, grupos de reflexão e universidades – que não estão bem posicionadas para avaliar independentemente um livro que critica o seu apoiante.

3. Num artigo da revista The Nation afirma que a Fundação Gates se posiciona no centro do esforço global para fornecer vacinas contra a Covid a nações pobres e que depois falhou espetacularmente nessa chamada missão. Importa-se de elaborar, por favor?

No início da pandemia, enquanto muitos governos falhavam no esforço de resposta, Bill Gates transformou décadas de trabalho da sua fundação em vacinas numa posição de liderança no cenário global, assumindo essencialmente o esforço de resposta da OMS para fornecer vacinas a nações pobres. Bill Gates insistia que os seus anos de experiência e as suas parcerias próximas com a indústria farmacêutica garantiriam um acesso equitativo às vacinas. Em vez disso, os esforços de Gates presidiram o que ficou conhecido como “apartheid de vacinas”.

A indústria farmacêutica seguiu o dinheiro, vendendo vacinas aos maiores licitantes das nações mais ricas. As pessoas pobres que Gates prometeu proteger ficaram sem vacinas. E, é claro, Bill Gates nunca foi responsabilizado por esses fracassos, nem nunca foi obrigado a explicar o que aconteceu. Quando a próxima pandemia chegar, a última pessoa na Terra que devemos ouvir é Bill Gates. A lição, de uma forma mais geral, é que precisamos de afastar-nos do modelo de Gates, no qual a saúde pública para os pobres é um privilégio gerido (ineficientemente) por filantropos bilionários.

4. No seu artigo salienta que dos 30.000 subsídios de caridade concedidos pela Fundação nas últimas duas décadas, mais de 88 por cento das doações, foram para beneficiários nas nações mais ricas e brancas. O que quer isto dizer sobre o poder das relações públicas e da realidade?

Sim – mais uma contradição marcante da Fundação Gates. Se olhar para os materiais de marketing da fundação, as suas conferências ou até o seu site – estes estão repletos de imagens de pessoas de cor, especialmente mulheres e crianças. No entanto, a fundação é impulsionada pelas paixões e ideologias de um bilionário americano branco, Bill Gates, e não pelas necessidades ou desejos dos seus beneficiários pretendidos. Também podemos seguir o dinheiro: quase todas as doações de caridade de Gates vão para países ricos, não para países pobres.

Bill Gates acredita realmente que ele e uma pequena equipa de especialistas de elite podem reunir-se na sede de meio bilião de dólares da Fundação Gates em Seattle e encontrar soluções para pessoas negras em locais distantes. Bill Gates convoca então ONGs, universidades e grupos de reflexão em nações ricas para executar as suas campanhas de caridade. Uma arrogância poderosa e um colonialismo perigoso impulsionam esta abordagem e não deveria ser surpresa que Gates não tenha sido muito eficaz. Ele não está a tornar o mundo num local mais justo ou igual.

No livro, relato que a Índia é o maior destino para o financiamento da Fundação Gates fora dos Estados Unidos ou da Europa. A fundação concedeu 600 subsídios de caridade, totalizando quase 1,5 biliões de dólares a grupos sediados na Índia. A fundação também tem um escritório em Deli. Ao mesmo tempo, Gates convoca muitas vezes grupos do Norte Global para supervisionar o seu trabalho na Índia. Nos últimos anos, por exemplo, a Fundação Gates subsidiou uma série de intervenções em saúde pública de amplo alcance em Bihar e Uttar Pradesh. Para liderar este trabalho, Gates nomeou a Universidade de Manitoba no Canadá e a CARE dos EUA. Portanto, mais uma vez deparamo-nos com o problema de Gates de capacitar instituições ricas para resolver o problema de pessoas pobres. Poderíamos escrever um livro inteiro sobre o trabalho de Gates na Índia. Confio que alguém fará isso em breve.

5. Quais são as principais conclusões do seu livro?

Não posso repetir isso o suficiente – porque estou a contestar décadas de relatórios unilaterais – a Fundação Gates é uma organização política, não uma instituição de caridade inocente. Deveria ser observada, regulamentada e tributada como um ator político, não como uma filantropia. A fundação está a moldar políticas públicas. Reúne-se com governos e pressiona-os a direcionar biliões de dólares dos contribuintes – o nosso dinheiro – para intervenções de caridade da fundação. Bill e Melinda Gates inserem-se pessoalmente no mais alto nível dos assuntos mundiais, como a sua participação nas reuniões do G-20 na Índia. Ninguém elegeu Bill Gates para liderar o mundo em qualquer assunto. Mas aqui está ele a reivindicar a liderança sobre um vasto conjunto de questões.

O nome do meu livro é “O Problema Bill Gates”, mas talvez seja melhor intitulá-lo “O Nosso Problema com Bill Gates”. Realmente cabe a todos nós decidir em que tipo de mundo queremos viver. Podemos tornar-nos fatalistas e decidir que o mundo sempre será definido por uma desigualdade extrema, e a nossa melhor aposta é esperar que os nossos bilionários sejam bons bilionários e que os nossos oligarcas sejam bons oligarcas. Ou podemos entender que temos capacidade de decisão, que essas são escolhas que fazemos, que outro mundo é possível.

Permitir que homens como Bill Gates se tornem obscenamente ricos é uma escolha que fazemos. Da mesma forma, permitir que Bill Gates transforme a sua grande riqueza em poder político não regulamentado por meio da filantropia – isso também é uma escolha que fazemos. À medida que uma nova geração de bilionários segue o exemplo de Bill Gates, preparando-se para transformar a sua riqueza pessoal desproporcional em influência política por meio da filantropia, é vital entendermos, debatermos e resolvermos “O Problema Bill Gates”.

Fonte: https://ullekhnp.com/2023/10/30/we-need-to-move-away-from-gatess-model-in-which-public-health-for-the-poor-is-a-privilege-administered-ineffectively-by-billionaire-philanthropists/